Por Valeria Michel*
A sigla ESG tem norteado boa parte das ações e estratégias de empresas nos últimos anos, em especial as de porte mais robusto. Isso é inegável. E são cada vez mais comuns os debates sobre o envolvimento de toda a cadeia de valor de cada companhia, conhecida como escopo 3, sobretudo quando o assunto é meio ambiente e governança. Mas, na seara social, acredito que isso não ocorra, ou não tem ocorrido com a velocidade e determinação necessárias.
Estou falando aqui da invisibilidade social que muitos atores sofrem e que, ao mesmo tempo, fazem parte de atividades da cadeia de valor das empresas ainda que de uma maneira mais distante, mas ainda importante. Exemplo? Catadores autônomos de material reciclável, muitos deles moradores de rua que vivenciam um dia a dia que passa desapercebido aos olhos de grande parte da sociedade, e são responsáveis por grande parte da coleta seletiva do país e ainda assim não aparecem em diversos relatórios sobre o tema. Pesquisas apontam uma série de irregularidades nas condições de trabalho e em relação aos direitos humanos desta categoria de trabalho tão importante para sociedade.
O tema invisibilidade social ganhou um recente reforço. No final do ano passado, o governo federal sancionou a criação da Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua, conhecida como PopRua, que busca garantir às pessoas que moram nas ruas trabalho, renda, qualificação profissional e elevação da escolaridade. O projeto prevê articulações com governos estaduais e municipais e investimentos em incentivos que beiram R$1 bilhão.
Valioso passo para combater essa mazela, sem dúvidas, já que estamos falando de mais de 220 mil pessoas vivendo nestas condições em 2.354 cidades espalhadas pelo Brasil, de acordo com levantamento do próprio governo federal.
Mas o setor privado pode, e deve, também fazer a sua parte ao se perguntar: “qual o problema social na minha cadeia de valor”? Será que existem direitos humanos silenciosos escondidos nesta cadeia? Ter em mente que possam existir urgências sociais em suas relações comerciais e de serviços é o primeiro passo para melhorar seus processos, eventualmente rentabilidade, mas certamente minimizar eventuais injustiças sociais.
Ao ressaltar esse cenário, não estou aqui defendendo o assistencialismo puro, que não traz benefícios e melhoras na vida desses seres humanos de forma perene como o problema demanda. Estou aqui para deixar claro que as empresas podem, têm condições para tanto, atuar com ações que vão desde orientações e encaminhamentos para tirar documentos oficiais – tornando essas pessoas cidadãos legalizados, ou seja, passando a “existir” para o Estado— até a qualificação de mão de obra via educação.
Ações aparentemente pontuais, que podem ganhar relevância e escala por meio de colaboração entre empresas, governo e terceiro setor. Afinal, é melhor causar um pequeno impacto do que nenhum.
E há dados que confirmam essa urgência. Apenas para citar exemplos concretos dentro da minha área de atuação, recente pesquisa CicloSoft 2023, realizada pelo Compromisso Empresarial pela Reciclagem (Cempre), ouviu 300 catadores autônomos de Fortaleza (CE), Porto Alegre (RS) e São Paulo (SP) divididos igualmente em cada cidade e identificou que 68% deles não acessam programas sociais e apenas 76% deles têm documento de identificação. Dos 100 ouvidos na capital paulista, 80% responderam que viviam em situação de rua.
Este tipo de informação nos levou, por exemplo, a desenvolver um projeto focado em ajudar um grupo de catadores de uma região mapeada como extremamente vulnerável, mesmo não estando próxima de nossas operações fabris, a obterem documentos e receber informações de acessos a programas sociais e de saúde. Além disso, também receberão informações sobre como trabalhar de forma mais organizada para conseguirem melhores rendimentos, incentivos materiais e contatos com outros agentes da cadeia de reciclagem.
Para as empresas que atuam com esse intuito, o ganho pode vir de diferentes formas, de maneira reputacional e competitiva, afinal não é de hoje que clientes e consumidores se mostram mais interessados em gastar seu dinheiro com quem se mostra preocupado com o meio ambiente e as pessoas. Isto também se reflete na atração de talentos para o quadro de funcionários, gerando interesse de jovens que buscam trabalhar em empresas que tenham propósito.
As empresas estão diante de um novo desafio: incluir essa parcela invisível que pode fazer parte da sua cadeia de valor na estratégia de negócios, e não olhar e agir apenas nas comunidades onde possuem operações. Evidentemente, este é um problema muito maior e que precisa ser liderado pelo governo federal por meio de políticas públicas, mas que pode ser apoiado pelas estratégias ESG das empresas.
É trabalhoso, com certeza, e envolve avaliações de compliance. Mas obrigatório se quisermos de fato tirar todas as letras do ESG do papel, em especial o S que tem sido a menos empenhada pelas empresas.
*Valéria Michel assumiu a liderança da área de Meio Ambiente da Tetra Pak em 2016, após 15 anos de atuação na empresa e atualmente é diretora de sustentabilidade para o Brasil e Cone Sul. Antes de ingressar na Tetra Pak, trabalhou em empresas como General Motors e Crosfield, uma filial brasileira do grupo ICI. Em sua trajetória na Tetra Pak, a executiva tem desempenhado um papel relevante para criar, ampliar e fortalecer a cadeia de reciclagem de embalagens cartonadas, liderando projetos em parceria com cooperativas e associações de catadores, poder público, Organizações Não Governamentais (ONGs) e outros. Valéria também é presidente do CEMPRE (Compromisso Empresarial para Reciclagem) desde 2020. Em sua formação, ela é graduada em Engenharia Química pela Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) e possui especialização em Gestão Ambiental pela Unicamp.